Aqui há bastos anos, em amena cavaqueira com um militar de um país em guerra e depois de uma entrevista sincera e cândida sobre guerra, armas e desarmamento, olha-me ele nos olhos e diz-me: Sabe doutora, grande parte dos nossos problemas foram criados por vocês.O “vocês” neste caso era eu como representante da putativa comunidade internacional de auxílio ao desenvolvimento. Como assim? pergunto eu ainda que bem ciente dos males das “boas intenções” e das hipocrisias das políticas internacionais.Sabe, continua ele em ar meditativo, vêm vocês para aqui com as vossas Unicefes e as vossas vacinas, baixam-nos a mortalidade infantil, acodem-nos nas calamidades naturais, financiam-nos escolas básicas e iludem os nossos jovens com o futuro melhor que a educação lhes vai dar. Mas depois, não nos ajudam mais. Aos 14, 15 anos eles saem da escola e já não querem trabalhar com os pais, não querem trabalhar a terra; querem um emprego, com gabinete e secretária e nós não temos estrutura para os absorver. Dantes tínhamos as nossas calamidades que nos regulavam a população, vocês agora dão vida a todos e depois largam-nos nas nossas mãos. Temos jovens e jovens e jovens, mal preparados e poucos homens para trabalhar, para pagar impostos, para contribuir para o Estado. Vocês passam o problema para nós e depois ainda se queixam que nós isto e nós aquilo.Consigo parar a tempo o insulto perante o cinismo e hesito – digo, não digo, digo, não digo. Lanço rapidamente um pensamento ao básico das conversas difíceis (conversa do “eu”; positivo, negativo, negativo, positivo) e digo: Senhor General, vai-me desculpar a franqueza, mas concordo em parte consigo e noutras discordo absolutamente. Discordo absolutamente quando se queixa das vacinas e das calamidades porque EU acho humanamente insustentável que se deixem morrer pessoas, ou ficarem marcadas para a vida, devido a doenças preveníveis ou tratáveis, ou porque não usamos os meios que temos para as salvar. Depois, porque (despersonaliza, penso eu, despersonaliza) foram os últimos trinta anos de guerra que mataram a geração que devia agora estar a produzir e a pagar impostos, foi a guerra que destruiu sistematicamente toda e qualquer estrutura que vos pudesse ajudar a construir um país próspero e finalmente porque o Estado tem outras fontes de rendimento muito superiores aos impostos que possam vir a cobrar. Tendo dito isto, simpatizo com os problemas que enfrentam com a comunidade internacional, mas ela é o que é e embora não seja fácil gerir os seus variados interesses, exigências e caprichos, EU acredito na vossa capacidade para o conseguirem fazer.Olhou para mim fixamente, desviou os olhos, rodou a cadeira para o lado, contraiu os maxilares, (pensei estou feita!), suspirou, rodou a cadeira de frente para mim, olhou-me novamente, (pensei outra vez estou feita!, tento lembrar-me se alguém saberia onde eu estava) e diz-me: Bem que me tinham avisado! Bem que me disseram que a doutora nos dizia coisas que mais ninguém tinha coragem para nos dizer assim cara a cara. Diga-me, não tem medo?Eu? Medo? Eu que estava petrificada, o que de certa forma deu jeito, convenhamos, pois mantive-me direita e impávida na cadeira onde me encontrava. (Fase dois da conversa difícil: "eu" e personaliza).Senhor General, EU penso que sem medo não há coragem. O Senhor General combateu uma guerra, penso que certamente terá também tido medo nalgumas ocasiões. Mas continuou porque acreditou. As minhas armas são a franqueza e as palavras, porque eu acredito que a vida das pessoas pode melhorar e aqui quem a pode melhorar são os senhores. E digo o que digo porque sou vossa amiga e os amigos também servem para nos dizer o que nos custa ouvir. EU só posso falar; são os senhores quem pode agir.Levantou-se, aproximou-se de mim. Eu, ainda petrificada, encolhi-me interiormente mas mantive a (com)postura, pôs-me uma mão no ombro, estendeu-me a outra e disse-me: tem todo o meu respeito. Tem carta branca para ir onde quiser e qualquer problema que tenha enquanto por aqui andar ligue-me. Está sob a minha protecção.Apertámos a mão, saí do gabinete. Fui direita à casa de banho e bolsei-me toda, coberta em suores. Livrei-me da bílis da minha cobardia e dos insultos calados. Demorei alguns segundos até me recompor nas pernas e saí do ministério de cabeça caída e coração apertado. Vendi-me?, perguntava-me.Esta conversa não me tem saído da cabeça nos últimos dias por uma estranha associação com as revoltas a que temos assistido e com as deolindas locais. Remetem-me para as pirâmides demográficas. Onde todos parecem ver motivos políticos e religiosos, eu não consigo deixar de ver também um conflito geracional. A pirâmide demográfica do país do meu General é quase igual à do Egipto, do Bahrain e da Líbia (para só nomear estes três países), que apresentam aquilo a que os ingleses chamam um pronunciado “
youth bulge”. Tal como nestes três países, também o regime do país do meu General tem sobrevivido devido à complacência internacional em aceitar o inaceitável sob a capa dos recursos ou das seguranças estratégicas. Tal como nestes três países também os jovens do país do meu General começam a dar um ar da sua graça. Discretamente ainda – um incêndio aqui, uns graffitis ali, um ligeiro aumento de decibéis na voz do descontentamento. Algo me diz que também o país do meu General é uma das peças na fila de dominós que em cadeia se derrubam.O meu discurso foi bonito, a promessa do General cumpriu-se e nunca tive problemas nesse país. Perante os ditadores hoje caídos vemos agora criticamente espalhados por todo o lado os apertos de mão, os banquetes, as palmadinhas nas costas que os representantes das nossas democracias não se coibiram de distribuir. Recuperam-se discursos e negociatas. E eu continuo a interrogar-me. Vendi-me?, pergunto-me eu ainda hoje. Infelizmente, acho que sim. Sob a capa do meu medo, da minha arrogância em querer motivar acção e das minhas (boas) intenções também eu me vendi. Sou tão cúmplice como os outros; também eu, por inércia, por medo ou por tacitez, contribuí para que se aceitasse o inaceitável e aqui confesso que também eu apertei a mão ao diabo.AL