Quinta-feira, 31.03.11

O amor é o amor — e depois?!Vamos ficar os doisa imaginar, a imaginar?...O meu peito contra o teu peito,cortando o mar, cortando o ar.Num leitohá todo o espaço para amar!Na nossa carne estamossem destino, sem medo, sem pudore trocamos — somos um? somos dois?espírito e calor!O amor é o amor — e depois?
Alexandre O'Neill, in 'Abandono Vigiado'AL
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Terça-feira, 29.03.11
Há dias assim em que amanhecemos cinzentos como o tempo lá fora; chove-nos na alma e a vida segue monocromática. E depois chegam notícias de um amigo distante com memórias felizes e o dia termina num por de sol cheio de luz.[caption id="attachment_26969" align="aligncenter" width="768" caption="Carrusca, Janeiro de 2007"]

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Passado o mar, passado o mundo, em longes praias,de areia e ténues vagas, como estaem que haverá de nossos passos a memóriaembora soterrada pela areia nova,e em que sobre as muralhas quanta sombrana pedra carcomida guarda que passámos,em longes praias, outras nuvens, outras vozes,ainda recordas esta, ó meu amigo?
Jorge de SenaAL
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Sexta-feira, 25.03.11

Grande parte das pesquisas que tenho feito assenta em diálogos e entrevistas com gentes diferentes, para recolher a informação que busco. Úteis de uma forma geral, tomam por vezes rumos inesperados. Uma pergunta mal entendida pode dar-nos informações preciosas sobre a entrevistadora (eu, neste caso), sobre a entrevista em si, mas também sobre o assunto em debate e acrescenta frequentemente dimensões inesperadas à informação que se procura. Lembro-me que foi devido a um mal entendido que numa entrevista em grupo as pessoas me explicaram como iam dormir para o mato durante a guerra, pois era geralmente de noite que as tropas faziam incursões nas aldeias. A partir daqui divergiu a entrevista para aspectos sobre percepções de espaço que me proporcionaram uma dimensão inesperada ao objectivo que lá me levara.Mas às vezes, mesmo sem perguntas, a informação flui e corre num sentido que não tem qualquer interesse, nem pessoal, nem em termos do objecto de estudo e da informação pretendida. E são estes entrevistados os mais difíceis de orientar ou conter.Vem isto tudo a propósito do Recenseamento e de uma amiga minha entrevistadora que se tem deparado com situações inesperadas. Pergunta sobre o aquecimento da casa e lá vem o arrazoado de queixas contra o senhorio, a falta de dinheiro para reforçar janelas; pergunta-se sobre o agregado familiar e lá vêm as queixas do marido que não participa e do filho que não faz nada; pergunta-se sobre o tamanho da casa e lá vêm as queixas sobre a vizinha do lado ou dos de cima que fizeram obras e agora a casa está a abrir rachas, quer ver? Mas embaraçoso mesmo, diz ela, é quando à pala do censo lhe gastam horas e horas de verborreia a maldizer o vizinho do lado e o marido e as amigas do marido e as tareias que o de cima dá na mulher e as bebedeiras que a do rés-do-chão apanha e... e... e...E tu?, perguntei-lhe eu, que fazes? Olha, o que querias que fizesse? Tento interromper mas raramente me dão chance, tenho que ir aguentando para ir preenchendo o inquérito e o tempo todo na minha cabeça só grito:
há informações que prefiro não saber! (ler isto aos gritos e em maiúsculas)Agora que parecem abundar as críticas, justas ou não, ao inquérito do census lembro aqui neste texto quase inútil esta minha amiga e todos os outros que, como ela, mais que entrevistadores e facilitadores do processo parecem ser terapeutas. Um efeito secundário e terapêutico do recenseamento e do qual não se tem falado.AL
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Quinta-feira, 24.03.11
Um poema que me foi enviado por um amigo muito recente.[caption id="attachment_26791" align="aligncenter" width="408" caption="Ilustracao de Nicoletta Ceccoli"]

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Amo-te. Basta-me um pássaro,uma árvorepara me transportar ao jardimde ti — um livro, uma palavra, o pesodo silênciopara me levarem ao poço de ti,aos teus olhos que ofuscamo cristal da manhã; à tua bocaaproximando-se da minha pelecomo se regressasse a casa.Cantar-te é desfazer o nevoeiro da minha vida,desfiar uma chama, ardendo lenta,que não se via. E basta-me um vinhoou a tua língua,ou a memória delapara que em mim disparem águastrémulas — ainda são ¬— e por issoquando te amosou um pouco essa montanha que tece com o ventouma combustão muito lenta muito pacientecomo se todo o fulgor da vidase concentrasse nos vales e nos rios do teu corpo.
Casimiro de BritoAL
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Segunda-feira, 21.03.11

Foi hoje postado no meu mural do Facebook um link a um artigo intitulado “
Five Positions on the Revolution” (Cinco posturas sobre a revolução) da autoria de
Alaa Al-Aswani, um escritor egípcio e fundador do
movimento político Kefaya (Movimento Egípcio para a Mudança), sobre a “tipologia” dos grupos que agora co-habitam no cenário pós-Mubarak. Não me vou pronunciar sobre os méritos do artigo excepto no que se refere a uma afirmação específica e cito:
Over the course of three weeks, there was not a single incident of sexual harassment or theft, even as one million people gathered in a single square.
Em português será mais ou menos isto: ao longo das 3 semanas não se registou
um único incidente de assédio sexual ou de roubo, mesmo quando se encontrava congregado 1 milhão de pessoas numa única praça.O que este escritor e fundador de um movimento político "para a mudança" parece ter esquecido foi a violação brutal de uma jornalista americana nesta mesma praça. O que me parece grave. A mim, este afirmação categórica e total omissão desta violação revela-me a indiferença com que este tipo de violência ainda é tratado. Como se espancar e violar uma mulher, seja ela de onde for, fosse um
fait-divers; enfim, um incidente de importância menor.Todos assistimos mais ou menos comovidos à coragem, resistência, espírito de solidariedade e civismo que os manifestantes demonstraram. Só espero que a omissão no artigo deste incidente brutal não seja o prenúncio da ligeireza, indiferença e impunidade da eventual violência que venha a ser exercido sobre as mães, mulheres e filhas do novo Egipto, que se quer democrata e livre.ALNota: fui ao site do artigo esta tarde e deixei um comentário neste sentido. Ficou a "aguardar moderação" e até à hora deste post não tinha ainda sido publicado.
Le plus ça change ...
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Sábado, 19.03.11
Desculpem-me os leitores maschambianos mas estou fascinada com este mundo novo que para mim se revela; parece que só tenho lugar agora para as palavras dos outros que me enchem com a sua melodia.[caption id="attachment_26664" align="aligncenter" width="761" caption="Picture by Luiz Gonzalez Palma"]

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Respiro o teu corpo:sabe a lua-de-águaao amanhecer,sabe a cal molhada,sabe a luz mordida,sabe a brisa nua,ao sangue dos rios,sabe a rosa louca,ao cair da noitesabe a pedra amarga,sabe à minha boca.
Eugénio de AndradeAL
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Quarta-feira, 16.03.11
[caption id="attachment_26554" align="aligncenter" width="602" caption="Photo by Robert and Shana ParkeHarrison"]

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NO CÉU da noite que começa Nuvens de um vago negro brandoNuma ramagem pouco espessaVão no ocidente tresmalhando.Aos sonhos que não sei me entregoSem nada procurar sentirE estou em mim como em sossego,Pra sono falta-me dormir.Deixei atrás nas horas ralasCaídas uma outra ilusãoNão volto atrás a procurá-las,Já estão formigas onde estão.
Fernando PessoaAL
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Domingo, 13.03.11

Sempre associei
Paracelso a uma obscura personagem renascentista, médico e, por qualquer razão, relacionado com farmácias. De acordo com a Wikipedia:
Seu pseudônimo significa "superior a Celso (médico romano)". Entre todas as figuras erráticas do renascimento, a de Paracelso está pontada pela agitação da sua vida e pela a incoerência das suas opiniões e doutrinas. No estudo da sua biografia, facto tem sido gradualmente separado da fantasia, mas nenhum acordo foi alcançado no que respeita bem quanto à natureza e sentido de seu ensino. Ele é considerado por muitos como um reformador do medicamento. Outros elogiam suas realizações em Química e como fundador da Bioquímica. Ele aparece entre cientistas e reformadores como Andreas Vesalius, Nicolau Copérnico e Georgius Agricola, e, portanto, é visto como um moderno. Por outro lado, sempre possuiu uma aura de místico e até mesmo obscura reputação de mágico.Durante séculos o seu trabalho tem sido criticado como não-científico, fantástico e na fronteira com a demência sendo que muitas de suas obras são puramente religiosas, sociais e éticas de caráter.
O que eu não sabia era que Paracelso tinha também sido poeta. Conheço dele um único poema que me foi dedicado por um amor fugaz. Nao sei se escreveu outros; uns googles em inglês referem-se ao poema de
Robert Browning "Song from Paracelsus" e as buscas em português não foram mais frutíferas. Mas por ser tão bonito, aqui deixo o que me foi dedicado, sem título e sem referência.[caption id="attachment_26496" align="aligncenter" width="376" caption="Photo by Kate Breakey"]

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Quem nada conhecenada amaQuem nada pode fazernada compreendeQuem nada compreendenada valeMas quem compreendetambém ama, observa e vê...Quanto maior o conhecimentoinerente numa coisa,tanto maior o amor...Aqueles que imaginamque todos os frutosamadurecem ao mesmotempo, como as cerejas,É porque nada sabemacerca das uvas
ParacelsoAL
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Sábado, 12.03.11
Apetece-me hoje partilhar um poema que gosto muito. Não tem nada a ver com este blog, mas sendo co-autora dele arrogo-me hoje do direito de fazer um post completamente fora de propósito. Digamos que é um post de "gaija".

Mesa dos sonhosAo lado do homem vou crescendoDefendo-me da morte quando douMeu corpo ao seu desejo violentoE lhe devoro o corpo lentamenteMesa dos sonhos no meu corpo vivemTodas as formas e começamTodas as vidasAo lado do homem vou crescendoE defendo-me da morte povoandode novos sonhos a vida.
Alexandre O'NeillAL
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Terça-feira, 08.03.11

Celebra-se hoje (e correndo o risco de irritar o nosso Senador que desgosta deste tipo de efemérides) o Dia Internacional da Mulher. Já aqui o mencionei no ano passado e na outra encarnação do ma-schamba. Hoje dei uma vista de olhos pela imprensa online e vejo que o dia parece estar a ser devidamente assinalado. Recordam-se mulheres famosas,
fazem-se rankings, referem-se tópicos considerados relevantes para as mulheres e de acordo com as agendas de quem os escreve.O ano passado falei aqui de mulheres anónimas, que provavelmente nunca farão parte dos rankings ou das notícias de topo; este ano não vou falar de nada disso. Vou falar de outros aspectos que me condicionam a mim, mulher, pelo simples facto de ser mulher (e não, não tem a ver com maternidade). Vem isto tudo a propósito de um passeio que dei recentemente com um amigo pelas ruas de Lisboa. Queixou-se ele a dada altura que Andar contigo na rua é um stress de dança. Estás sempre a trocar de lugar comigo; não sabes que é suposto sermos nós os homens a andar do lado de fora do passeio? Eu ponho-me do lado de fora e mal dou por isso já me trocaste o passo!.Tinha razão o meu amigo. Habituei-me já há muitos anos a andar do lado de fora do passeio por ser mais seguro quando caminho sozinha; não fico encurralada entre um potencial malfeitor e uma parede, consigo assim manter uma rota de fuga. E comecei a inventariar as coisas que faço automaticamente quando caminho sozinha pelas ruas. De dia, do lado de fora do passeio; de noite, pela estrada que passa a ser a minha rota de fuga se me sair alguém escondido entre dois carros; não gosto de usar rabo de cavalo (quando tenho o cabelo comprido) porque se pode revelar uma potente arma de submissão física; se ando de cabelo comprido solto, tendo a metê-lo para dentro da gola do casaco ou debaixo do cachecol, pela mesma razão. As pontas do cachecol, os lenços, os colares, estão também sempre bem metidos por dentro da roupa. Se ando de carro tranco as portas todas e nunca abro os vidros o suficiente para permitir a introdução de um torso. Conviveste muitos anos com a violência, responde o meu amigo com remate de compaixão.Talvez. Talvez ele tenha razão. Talvez a vivência nos contextos de violência tenha ajudado a interiorizar este meu comportamento de tal forma que hoje assim reajo tão automaticamente. Mas as regras, aprendi-as num país europeu considerado como dos mais seguros e o que elas me dizem principalmente é que me comporto assim porque sou mulher. E penso que, como eu, milhares de outras mulheres se socorrem de pequenos gestos semelhantes por serem mulheres e não por viverem em contextos de violência. O que não deixa de ter o seu quê de irónico. Se por um lado nos dão potencialmente uma sensação de maior “segurança”, por outro reforçam a imagem de vulnerabilidade associada com o meu sexo.Penso que nunca como actualmente se falou tanto sobre estas questões de sexo, género e igualdade. Introduzir diferenças biológicas nestes debates tornou-se quase anátema e o fosso entre biologia e cultura tem vindo a alargar-se. Eu tenho para mim que as questões são multifacetadas e raramente definidas ou explicadas por uma causalidade. Nem me interessa particularmente o que pesa mais nesta questão do género – biologia ou cultura; penso ser mais interessante a forma como se articulam. Se sexualmente nos completamos para criar vida, completemo-nos então culturalmente para criarmos igualdade. Por isso e por ser hoje o Dia Internacional da Mulher, saúdo hoje igualmente os nossos leitores homens e deixo-vos dois artigos onde também eles são incluídos, ainda que de forma bem diferente: um foca
diferenças no tratamento de comportamentos semelhantes e o outro a
violação (também) masculina.AL
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