Tem o meu mural do FB sido inundado com um vídeo difundido com loas e manifestações de orgulho nacionalista. Céptica destas coisas e geralmente receosa do que vou ver tenho resistido a abri-lo. Fi-lo, para minha desgraça, hoje de manhã. Falado em inglês, chama-se em português: O que os Finlandeses deveriam saber sobre Portugal.Repleto de inexactidões históricas e manipulações grosseiras (foi a manifestação em Portugal que expulsou a Indonésia de Timor Leste? A sério?), vamos assumir, por uma questão de argumento, que é verdade tudo o que lá está. O que diz o vídeo de nós como nação?A nossa língua é falada nos continentes todos, mais falada que esta e aquela, blá blá blá, mas para nos anunciarmos ao mundo temos que fazer estes vídeos em inglês. Isto é, a nossa língua
é a máior da nossa aldeia mas não passa de periférica; não entra nos corredores do poder. E segue por aí fora com Deus e Futebol (esqueceram-se do fado!) e os gloriosos legados portugueses espalhados por esse mundo fora. Isto é, continuamos virados para um passado fantasiado, ignorando o presente e de costas viradas ao futuro.Somos um país muito criativo, cheio de gente com imensas ideias e inventores, só que não registamos as patentes e os outros abusam, roubam-nos as patentes e usam-nas para lucro indevido. Desconseguimos capitalizar ideias. Por outras palavras, somos uns idiotas. Conheço uma pessoa assim: tem montes de ideias (algumas boas) mas só as consegue transformar em websites que ninguém consulta, em T-shirts que ninguém compra e em dívidas que não paga. Apelida-se de empresário mas não trabalha, a culpa do seu fracasso é sempre dos outros e vive de chulice. Parece-me a mim um espelho bem melhor do país, mas isto sou eu que tenho mau feitio. Remata o dito vídeo com o auxílio dado aos finlandeses aqui há umas décadas.Se eu fosse finlandesa perguntar-me-ia como é que um país tão glorioso chegou a este ponto? E depois, perguntar-me-ia: porquê os finlandeses? Provavelmente, e porque sendo finlandesa seria certamente ignorante e muito menos esclarecida que os iluminados portugueses de brilhos passados, pensaria ainda que em Portugal não existiria um regime democrático, que os portugueses se veriam assim privados de escolher quem os governe. O que justificaria o desgoverno presente. Talvez...Talvez mais tarde, provavelmente bastante mais tarde, me ocorresse que seria porque o senhor do Banco Central Europeu é finlandês, o que me iria confundir ainda mais. Porque sendo finlandesa, desconhecedora por certo do nepotismo baixinho e da corrupção comezinha da enfermeira-que-é-vizinha-de-um-amigo-meu-e-me-vai-arranjar-uma-consulta-já-para-amanhã, falando uma língua quase impronunciável e falada somente por um punhado de gente, oriunda de um país sem passado glorioso e sem legado histórico global, que pediu ajuda quando precisou e andou para a frente para não tornar a precisar, desconheceria por certo o choradinho; o síndrome do chefinho é que manda e do “ó chefe veja lá que até somos uns gajos porreiros e até vos ajudámos aqui há umas décadas, portanto veja lá agora o que nos faz!”; o apelo à caridadezinha; a mão estendida para uns trocos.Nem sei o que dizer a não ser que estou coberta de vergonha; tenho pena de não ser finlandesa.AL
A casa que protagoniza esta foto é uma casa de mulheres no País Dogon, Mali. Chama-se, mais propriamente,
casa de menstruação por albergar as mulheres naqueles dias do mês em que são consideradas impuras; interditas, portanto, de confeccionarem comida, de fazerem tarefas domésticas e de se dedicarem à terra. Os homens estão estritamente proibidos de ver, tocar ou cheirar o sangue menstrual e nalgumas aldeias nem falam com mulheres menstruadas – acreditam que estes contactos fazem perigar a sua virilidade. Assim, as mulheres menstruadas juntam-se aqui, onde são tratadas e alimentadas pelas idosas pós-menopáusicas da comunidade, numa semana de merecido repouso.Quando visitei a aldeia onde fica esta casa, cruzei-me com uma activista canadiana dos direitos da mulher. Horrorizada pela discriminação que tais casas representavam; pela demonização da mulher como fonte de mal; pela exclusão social espoletada por algo tão natural (visceral?) na mulher, dizia a quem passava por perto “
C’est pas bien cette maison, hein? C’est pas bien pour les femmes!”… Os que por ali passavam olhavam-na com ar de quem está habituado a diatribes semelhantes e aquiesciam com a cabeça, naquele gesto de bondade que se tem para os loucos inocentes e seguiam o seu caminho num murmúrio quiçá equivalente ao nosso “pois, está bem…” Eu, talvez mais básica, pensei para comigo que bem que me teria sabido em certos meses ter sido excluída assim, para uma casa onde houvesse quem durante uma semana me tratasse a mim e aos meus filhos pequenos.Caímos as duas, a Canadiana e eu, na mesma falácia – ela, a Canadiana, por ignorar as mercês deste tipo pontual de exclusão expressando juízos de valor de uma igualdade de cariz cultural; eu, por valorizar as mercês deste tipo pontual de exclusão ignorando os
limites impostos pelo simples facto de se ser mulher. Não consegui ainda sair da ambivalência para que este tipo de discurso me remete - reconheço-lhe os matizes de imposição de uma certa arrogância cultural, mas incomoda-me o inaceitável que o cultural procura legitimar:
- uma em cada três mulheres é espancada ou forçada a ter relações sexuais, geralmente por alguém que lhe é próximo
- a violência é uma das principais causas de morte ou de deficiência nas mulheres entre os 15 e os 44 anos; a violação e a violência doméstica causam mais mortes neste grupo etário do que cancro, desastres, guerra e malária
- calcula-se que 100 a 140 milhões de mulheres e meninas sofrem actualmente as consequências da mutilação genital feminina e 2 milhões de meninas correm anualmente o risco de sofrerem este tipo de mutilação (6.000 por dia)
- este tipo de mutilação realiza-se geralmente entre a infância e os 15 anos de idade
- em África o número de raparigas mutiladas a partir dos 10 anos de idade situa-se nos 92 milhões
- as maioria das mulheres ainda enfrenta discriminação perante a Lei
- todos os anos são traficadas para os Estados Unidos cerca de 50.000 mulheres e meninas para diversas formas de trabalho e exploração sexual
- anualmente traficam-se a nível mundial 4 milhões de mulheres e meninas para os mesmos fins
- uma em cada cinco mulheres vai ser vitima de violação ou de tentativa de violação ao longo da sua vida
- nos Estados Unidos em cada 90 segundos é violada uma mulher
- cerca de 70% das mulheres vitimas de assassínios foram mortas pelo seu marido/namorado/companheiro
- 82 milhões de meninas actualmente com idades entre os 10 e os 17 anos vão ser forçadas a casarem antes dos 18 anos de idade
- anualmente entram cerca de 1 milhão de crianças, principalmente meninas, na indústria do sexo
- nalguns países africanos 16% dos doentes tratados em hospitais por doenças sexualmente transmitidas têm menos que cinco anos de idade
Por isto, por ter nascido e crescido num ambiente relativamente igualitário, por ter filhas e uma neta, por raramente me ter sentido discriminada por ser mulher, pelas mulheres discriminadas que conheço e porque a irritação causada pelo discurso da advocacia não nos deve cegar, aqui deixo este post.AL
[caption id="attachment_27554" align="aligncenter" width="768" caption="Praia da Carrusca"]
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Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!E eu acreditava.Acreditava,porque ao teu ladotodas as coisas eram possíveis.Mas isso era no tempo dos segredos.Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.Era no tempo em que os meus olhoseram os tais peixes verdes.Hoje são apenas os meus olhos.É pouco, mas é verdade:uns olhos como todos os outros.Já gastámos as palavras.Quando agora digo: meu amor...,já não se passa absolutamente nada.E no entanto, antes das palavras gastas,tenho a certezade que todas as coisas estremeciamsó de murmurar o teu nomeno silêncio do meu coração.Não temos já nada para dar.Dentro de tinão há nada que me peça água.O passado é inútil como um trapo.E já te disse: as palavras estão gastas.Adeus
Eugénio de AndradeAL