
Vejo-a ocasionalmente quando de manhã cedo vou passear a cadela ou se, ao fim da tarde, vou à mercearia. Cruzamo-nos; eu no carro e ela a pé, com o filho nos braços. É nova, muito nova mesmo, aí pelos seus vinte anos mal medidos; ele deve rondar os dois anos de idade. Moram ao fundo da rua íngreme que, a ocidente, ladeia a quinta que temos para os lados da Costa.De manhã, vai ela subindo a ladeira com a mala a tiracolo, um saco na mão que, presumo, contenha a marmita com o almoço e lanche para o filho. Com o braço que lhe sobra abraça o menino que carrega ao colo. Ela franzina, cabelo comprido, rosto bonito e marcado já pela crueza da vida; ele faz-me lembrar as ilustrações de um livro que tive na infância e que se chamava “O Pequeno Lorde”. Cabelos louros com ondulado de anjo, repousa a cabeça no ombro dela e olha o mundo com olhos inchados ainda pelo sono. As mãozinhas papudas rodeiam o pescoço da mãe, fazem-lhe uma festa ocasional no cabelo e movimentam-se a pontuar algo que lhe vai contando.Sei que vão conversando um com o outro, não porque os ouça, mas porque lhes vejo o movimento dos gestos e o sorriso que lhe atravessa, a ela, o rosto cansado. Nada sei sobre eles, mas comovo-me sempre que me cruzo com a intimidade terna que, ladeira acima, ladeira abaixo, os une e envolve.AL
[caption id="attachment_31812" align="aligncenter" width="400" caption="Foto tirada daqui:
http://artephotographica.blogspot.com/2009/06/ricardo-rangel-1924-2009.html"]

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Exposiçao de fotografías de Ricardo Rangel
Kulungwana - Estaçao central dos CFM, de 03 November at 18:00 - 27 November at 23:30
Uma história, mil estóriasMuitas das suas das fotografias têm uma história contada por Rangel ou pelos seus amigos. Por isso, esta exposição é como que uma história onde se reúnem e contam e se podem imaginar e criar mil estórias à volta de uma fogueira.Só vou contar aqui uma das histórias, que corre o mundo e que demonstra o espírito heróico de Ricardo Rangel. É a história de uma fotografia e que regista a história de um menino a quem chamavam “o oito” porque tinha uma marca na testa com a forma de um 8 deitado:
Um dia, Ricardo Rangel soube que um criador de gado colonialista tinha marcado o seu jovem guardador de gado com o ferro em brasa, que usava para marcar o seu gado, por ele ter perdido um dos seus bois. Então, Rangel foi para Changalane e procurou o jovem durante dois dias até finalmente o encontrar. Fotografou-o. O patrão do menino queria dar-lhe um tiro, mas Rangel, armado com a sua máquina fotográfica, não teve medo das armas do patrão daquele menino.Como Ricardo Rangel disse, a fotografia foi sempre sua arma para defender, dignificar e eternizar o povo.
AL