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maschamba



Domingo, 02.10.11

Cruzadas de identidade

Interrogava-se aqui há dias um amigo angolano sobre o porquê de tantas localidades com o nome Angola, ou com referências angolanas, nos Estados Unidos. Dava ele como exemplo a Congo Square em Nova Orleães no Luisiana. Local utilizado para dança e entretenimento de escravos, que tem hoje lugar de destaque como berço do jazz.Profissionalmente deformada, lembrei-me logo da famosa penitenciária Angola de sua graça e especulei se não estariam estas referências ligadas ao tráfico de escravos. Juntaram-se mais meia dúzia de amigos ao debate, adicionaram-se mais localidades de seu nome Angola (Luisiana, Geórgia, Indiana, Virgínia, Delaware, Carolina do Norte e Nova Iorque), um supermercado de beira de estrada entre Michigan e Flórida; trocaram-se referências académicas (John Thorton e Linda Heywood, “Central Africans, Atlantic Creoles and the Foundation of the Americas, 1585-1660”, Cambridge University Press, 2007) e ficámos a saber que num dialecto falado nalgumas partes do sul dos Estados Unidos existe a palavra “goober” para amendoim, derivada de ginguba (palavra para amendoim em Angola, Moçambique, República Democrática do Congo, etc). Entre comentos e trivialidades, um participante no debate colocou o link para o vídeo que espoletou este postal.Lembro-me agora da minha estadia no Gana e do imenso turismo de raízes (roots ou ancestry tourism) naquele país. São cidadãos americanos ou caribenhos que, já na idade da reforma, se deslocam ao Ghana em busca do local de origem dos seus ancestrais escravos. Trazem documentos e fotos antigas e embarcam nesta cruzada verdadeiramente comovente, na esperança de sentirem a pertença que em casa des-sentem. Conheci alguns quando estive num hotel da Gold Coast; eles faladores e desejosos de meter conversa, eu, curiosa e tagarela, sempre disposta a qualquer papo. Falavam-me das suas vidas boas de classe média, da casa no subúrbio, dos filhos doutorados e de sucesso; mostravam-me as fotos que traziam, desgastadas e a preto e branco; contavam-me a história desses rostos do passado que buscavam. Invariavelmente a conversa terminava com a relativa desilusão sentida com a viagem. Sim, foi bom terem vindo e terem visto África pela primeira vez (África ainda homogénea e mítica nas suas mentes); sim, foi bom terem conhecido parentes que nem da sua existência sabiam, ou então lamentavam não os terem conseguido encontrar. Mas todos continuavam com o desconforto identitário trazido de lá de longe onde moravam. Porque se se sentiam estrangeiros “lá”, mais estrangeiros ainda se sentiam “aqui” nesta terra cujos preceitos desentendiam. Via-os partir do hotel, em grupo e embarcar no auto-pullman, com a perplexidade estampada no rosto. Para darem o lugar a outros como eles que, acabados de chegar, traziam no passo aquela esperança naïve e entusiástica de quem enceta caminho.AL

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por AL às 23:10


4 comentários

De AL a 03.10.2011 às 19:30

Tem toda a razao umBhalane, as fontes nem sempre sao fiaveis. Curiosamente, a primeira vez que ouvi a palavra ginguba (alias foi gingumba) foi a um amigo mocambicano. Mais tarde viria a ouvir essa palavra sempre associada a Angola e referida como termo angolano. Quando no debate que se gerou a pessoa que citou "goober" como enraizada em ginguba referiu tambem ser este um termos utilizado em diversas zonas da Africa Central (nomeadamente nos Congos), questionei-me. Googlei e realmente referiam o termo como comum nos paises que citei. Obrigada pelo esclarecimento e pela adenda lexica que aqui nos deixou :)

De umBhalane a 03.10.2011 às 18:58

Esta coisa da identidade tem que se lhe diga.
O assunto abordado, mormente a "saga" dos Africanos noutros continentes, a busca das suas raízes, é revelador de quão problemático é a questão da identidade.
Não basta ser-se, querer ser-se, mas também ser-se aceite.

Pormenor.
Ginguba - amendoim (Angola)

O recurso a meios auxiliares Brasileiros, fontes, é problemático.
Facilitam demais, e são pouco rigorosos
Tropicalismo?
E custa-me escrever isto, mas é pura verdade.

Moçambique, o termo ginguba, ou não é utilizado, ou pelo menos mais de 90% da população não o usa, simplesmente porque nada tem de Moçambicano.
Sem quaisquer pretensões de conhecer a maioria das línguas, nem os "legítimos" as conhecem, transcrevo os termos usados para amendoim nas línguas:

- Cisena, mormente, Phodzo - mandui - a minha 2ª Língua;

- Echuwabo – mandduwi - a Língua da zona de Quelimane, a minha capital, Zambézia;

- Emakhuwa (variante central) - mattuvi;

- Lomwé - macwiini, mucesa, nacuva;

- Shimakonde - ndeja.

Este acrescento também serve para adensar a problemática da identidade.

E sobretudo para também rir um pouco, com o Moçambique "homogéneo" e mítico de muitas mentes, que não a sua, sei-o muito bem.

Tacuta

De AL a 03.10.2011 às 11:32

Boa questao LL e ainda que lhe reconheca a ligeireza brincalhona, nao deixa de ser pertinente. Vampira? Sim, talvez. Nunca me tinha visto por esse prisma mas se eu pensar bem, no contexto que refere de coleccionadora de estorias, talvez ate nem esteja mal descrita. E nao, nao ajudei esses turistas perplexos e algo desorientados, nem era essa a minha funcao. Ou talvez tenha ajudado ao emprestar um ouvido atento. Nem o contexto sequer se prestava a tal: encontros na mesa partilhada do matabicho e por vezes uma bebida depois do jantar no hotel relativamente isolado onde nos encontravamos. Durante o dia eu ocupava-me num seminario no proprio hotel e eles partiam em busca de familias e lugares. Nao passava eu de um encontro fortuito a quem eles contavam as suas perplexidades.
Mas levanta o LL uma questao etica que frequentemente me aflige e que o JPT tao bem retratou no post recente sobre a sua panca e que francamente ainda nao resolvi. Pior ainda, nem sei como resolver. Ou talvez nem tenha resolucao e tenha que conformar-me em viver com este desconforto de coleccionar estorias (ou entrevistas) sem interferir. Ou ajudar, como diz o LL.
De resto, agradeco o seu comentario tao sincero e, sim, pessoal. Tambem eu tenho um permanente desconforto identitario que por nao me deixar pertencer a nenhum lugar, me deixa em casa em todo o lado. :)

De Lowlander a 03.10.2011 às 10:56

AL, reconheco facilmente essa aparente contradicao desses turistas que descreve.
Ainda nem ha 10 anos que aqui vivo.
Sei muito bem (ou... enfim tao bem quanto me contaram) de onde vim e de onde os meus pais vieram. E no entanto, verdadeiramente Escoces nunca poderei ser (enfim, de acordo com a velha piada, talvez ninguem no mundo o possa ser):

http://en.wikipedia.org/wiki/No_true_Scotsman

por outro lado, ha muito tempo que a cada visita que faco a Portugal me sinto cada vez mais "estrangeirado" e a olhar o pais com uma perspectiva cada vez mais desapegada (objectiva? clinica? gostaria de acreditar que sim...)

E agora? Pela minha parte, cheguei a conclusao (racionalizei a frustracao?) que estas buscas identitarias nao podem ser feitas assim, na busca de locais ou grupos sociais no final de contas exteriores ao individuo, e util conhecer de onde viemos na medida em que conhecimento, medida em que as unidades familiares sao influenciadas pela cultura em que se inserem, mas, essa tal cultura e uma mera media agregada de comportamentos individuais, ora ninguem e absolutamente medio, logo, ninguem pode ser uma replica exacta da cultura de onde veio e se for, e um grande chato, um automato em vez de ser um individuo.
Eu sou e fui definido pela minha familia proxima, so indirectamente pela cultura onde cresci.
Assim sendo as buscas identitarias tem de ser feitas dentro de nos proprios e na experiencia propria que tivemos e nao la fora, mesmo que esse fora seja o meu berco.
Mas divago.

Questao, mais traicoeira: e a AL, tentou a ajudar, guiar esses turistas desorientados da sua busca ou andou apenas simplesmente a colecionar, a beber historias qual vampira, para analisar depois objectiva e desapaixonada?

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