Segunda-feira, 18.07.11
Visitei o
Museu de Robben Island em 1997, tinha ele aberto há pouco tempo. Havia ainda muito poucos a fazê-lo e naquele dia meio cinzento e de mar picado convenhamos que a travessia não era a mais convidativa; éramos um grupo de cerca de 10 pessoas. Fomos recebidos no cais por um ex-prisioneiro que nos fez o tour da prisão-museu. Talvez por causa do dia ventoso e meio cinzento, talvez por sermos poucos os visitantes, talvez também porque o local a tal convidava, o ambiente tornou-se introspectivo e o nosso guia guiou-nos pela calçada da sua memória. Deambulámos vagarosamente pelos corredores, pátios, salas e celas enquanto ele, quase num transe, ia entrelaçando as suas vivências no espaço que percorríamos e nas vidas que por lá passaram. Abalados pelo local e sob o peso da sua catarse, nós, os visitantes, seguíamo-lo em silêncio. Acabámos sentados nos bancos corridos de uma das salas adjacentes aos balneários enquanto ele acabava a sua história: Depois de tantos anos aqui dentro não consegui viver lá fora... A chegada do ferry que nos ia levar de volta despertou-nos do feitiço em que nos encontrávamos. Ele limpou as lágrimas, apertou a mão a cada um de nós e desapareceu por uma porta. Nós seguimos para o ferry, num silêncio que só foi quebrado por sussurros quase à chegada a Capetown.Celebramos hoje o aniversário de Mandela. Disseram-me um dia que falar dele é como falar do 25 de Abril ou do 11 de Setembro; todos parecemos ter uma memória pessoal a ele associada. A minha é esta.AL
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Quarta-feira, 04.05.11
A casa que protagoniza esta foto é uma casa de mulheres no País Dogon, Mali. Chama-se, mais propriamente,
casa de menstruação por albergar as mulheres naqueles dias do mês em que são consideradas impuras; interditas, portanto, de confeccionarem comida, de fazerem tarefas domésticas e de se dedicarem à terra. Os homens estão estritamente proibidos de ver, tocar ou cheirar o sangue menstrual e nalgumas aldeias nem falam com mulheres menstruadas – acreditam que estes contactos fazem perigar a sua virilidade. Assim, as mulheres menstruadas juntam-se aqui, onde são tratadas e alimentadas pelas idosas pós-menopáusicas da comunidade, numa semana de merecido repouso.Quando visitei a aldeia onde fica esta casa, cruzei-me com uma activista canadiana dos direitos da mulher. Horrorizada pela discriminação que tais casas representavam; pela demonização da mulher como fonte de mal; pela exclusão social espoletada por algo tão natural (visceral?) na mulher, dizia a quem passava por perto “
C’est pas bien cette maison, hein? C’est pas bien pour les femmes!”… Os que por ali passavam olhavam-na com ar de quem está habituado a diatribes semelhantes e aquiesciam com a cabeça, naquele gesto de bondade que se tem para os loucos inocentes e seguiam o seu caminho num murmúrio quiçá equivalente ao nosso “pois, está bem…” Eu, talvez mais básica, pensei para comigo que bem que me teria sabido em certos meses ter sido excluída assim, para uma casa onde houvesse quem durante uma semana me tratasse a mim e aos meus filhos pequenos.Caímos as duas, a Canadiana e eu, na mesma falácia – ela, a Canadiana, por ignorar as mercês deste tipo pontual de exclusão expressando juízos de valor de uma igualdade de cariz cultural; eu, por valorizar as mercês deste tipo pontual de exclusão ignorando os
limites impostos pelo simples facto de se ser mulher. Não consegui ainda sair da ambivalência para que este tipo de discurso me remete - reconheço-lhe os matizes de imposição de uma certa arrogância cultural, mas incomoda-me o inaceitável que o cultural procura legitimar:
- uma em cada três mulheres é espancada ou forçada a ter relações sexuais, geralmente por alguém que lhe é próximo
- a violência é uma das principais causas de morte ou de deficiência nas mulheres entre os 15 e os 44 anos; a violação e a violência doméstica causam mais mortes neste grupo etário do que cancro, desastres, guerra e malária
- calcula-se que 100 a 140 milhões de mulheres e meninas sofrem actualmente as consequências da mutilação genital feminina e 2 milhões de meninas correm anualmente o risco de sofrerem este tipo de mutilação (6.000 por dia)
- este tipo de mutilação realiza-se geralmente entre a infância e os 15 anos de idade
- em África o número de raparigas mutiladas a partir dos 10 anos de idade situa-se nos 92 milhões
- as maioria das mulheres ainda enfrenta discriminação perante a Lei
- todos os anos são traficadas para os Estados Unidos cerca de 50.000 mulheres e meninas para diversas formas de trabalho e exploração sexual
- anualmente traficam-se a nível mundial 4 milhões de mulheres e meninas para os mesmos fins
- uma em cada cinco mulheres vai ser vitima de violação ou de tentativa de violação ao longo da sua vida
- nos Estados Unidos em cada 90 segundos é violada uma mulher
- cerca de 70% das mulheres vitimas de assassínios foram mortas pelo seu marido/namorado/companheiro
- 82 milhões de meninas actualmente com idades entre os 10 e os 17 anos vão ser forçadas a casarem antes dos 18 anos de idade
- anualmente entram cerca de 1 milhão de crianças, principalmente meninas, na indústria do sexo
- nalguns países africanos 16% dos doentes tratados em hospitais por doenças sexualmente transmitidas têm menos que cinco anos de idade
Por isto, por ter nascido e crescido num ambiente relativamente igualitário, por ter filhas e uma neta, por raramente me ter sentido discriminada por ser mulher, pelas mulheres discriminadas que conheço e porque a irritação causada pelo discurso da advocacia não nos deve cegar, aqui deixo este post.AL
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Sábado, 30.04.11
[caption id="attachment_27531" align="aligncenter" width="594" caption="Fotografia de Miguel Barros"]
[/caption]Estreei-me no Ma-schamba em Novembro de 2009 com uma fotografia do meu amigo
Miguel Barros, Africanista recente mas já viciado e com um texto que hoje deixo novamente aqui. Despertou-me a memória vívida de um fim de tarde mágico em Benguerua, sentada na areia ainda morna da praia à espera do
dhow que nos vinha buscar. Eram assim as cores do nosso céu de então; o ar doce e manso, o mar adormecido em efeitos de seda. Deitados na proa do
dhow, cruzámos a baía embalados pelo arrufo da água no casco, só quebrado pela conversa do vento com as velas. O matiz de cores foi-se esbatendo para dar lugar à luz ocre da lua que nascia. Lá à frente, a Ponta de S Sebastião, ao nosso lado deslizou Magaruque; cresciam os coqueiros que bordam Vilankulos. Tempo e espaço cristalizados num momento perfeito que nada se atrevia a perturbar. Já perto da vila começaram os tan-tans dos pescadores, a pastorearem o peixe para o redil dos baixios, onde a maré vazia os deixaria encurralados e presa fácil. Da margem, o ocasional ulular de uma mulher. Acostámos em frente à casa, numa magia de verbo sufocado e palavras supérfluas.Cheia de saudades e repleta de nostalgia aqui deixo esta carta de amor, ridícula como se querem as cartas de amor. A mim, à minha vida, à vida minha.AL
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Sexta-feira, 29.04.11
Na outra encarnação do Ma-schamba fiz um post-socorro em que pedia aos leitores se haveria alguém que me elucidasse sobre a origem de uma palavra portuguesa encontrada durante uma das minhas viagens. Nesse post-socorro falava tambem de um jogo muito popular em todo o mundo. Tive imensas respostas sobre o jogo e sobre os diferentes nomes a ele atribuídos, mas a minha pergunta ficou sem resposta. Por isso aqui fica a re-edição.Andei aqui há uns anos pelo
Mali, país absolutamente mágico e de gentes afáveis e hospitaleiras. Viajei pelas suas diferentes regiões e, claro, pelo
País Dogon, que parece quase um museu vivo etnográfico. Apetece-se ficar por lá, escondido do tempo. Todas as aldeias que visitei apresentavam, num local mais ou menos central, uma estrutura construída por grandes lajes sobrepostas que a elevam do chão e com uma cobertura espessa de ramos e palha assente em pilares de pedras empilhadas. Estas estruturas são o ponto fulcral das aldeias. É lá que geralmente se encontra o chefe da aldeia; é lá que os homens se reúnem para conversar, jogar, debater questões relevantes para a comunidade e aconselhar-se com os mais idosos ou com o chefe da aldeia. Há-as simples e há as pesadamente ornamentados. As mulheres têm as suas casas próprias de que falarei num outro post aqui na maschamba.[caption id="attachment_27520" align="aligncenter" width="664" caption="Toguna muito simples"]
[/caption][caption id="attachment_27521" align="aligncenter" width="737" caption="Toguna ricamente ornamentada"]
[/caption]É um local muito aprazível. O chão de laje, amaciado por anos de uso, é fresco e convidativo. Geralmente, uma das lajes tem as cavidades necessárias para se jogar o que na Ásia se chama
mancala,
tchuva em Moçambique e oril em Cabo Verde. Trata-se de um jogo que já vi jogar (e joguei) em diversas partes do mundo; umas vezes com tábua própria, outras vezes com simples
covinhas feitas no chão, que vão sendo enchidas e esvaziadas de pedrinhas, conchas, sementes… As regras variam de sítio para sítio, mas o objectivo geralmente é “comer” as peças do adversário.[caption id="attachment_27523" align="aligncenter" width="829" caption="mancala, tschuva ou oril"]
[/caption]A cobertura da estrutura é geralmente muito espessa e protege do sol e do calor; a ausência de paredes permite uma ventilação desimpedida; o pé direito destas estruturas é pouco mais de 1 metro. Pensei que fazia sentido, pois o tecto baixo impedia a incidência dos raios solares, proporcionando uma sombra maior. Até que um dos velhos numa aldeia me explicou educadamente que não teria sido isso que se tinha em mente. Disse-me ele não ser este um espaço para pressas, para um entra e sai desarvorado. Ter que entrar agachado e permanecer sentado lembra a quem chega que ali se fala, mas também se ouve. E com tempo! Mais ainda, sendo a estrutura um espaço de debate para questões importantes da aldeia e sendo a natureza humana aquilo que é, espera-se que durante esses debates os ânimos se exaltem. E, pessoas exaltadas tendem a levantar-se e a gesticular. Sempre que tal acontece o exaltado bate invariavelmente com a cabeça no tecto, acalmando assim de imediato os ânimos. Nada de dizer bojardas e sair porta fora, não senhor!Agora vem a parte que mais me espantou. O nome destas estruturas é
toguna ou
casa-palavra. Assim, tal e qual, no mais puro português. Nome que nem sequer sofria de qualquer abastardamento da pronúncia francesa, língua oficial do Mali. Nada de cásá-pálavrá, mas sim cása-palávra com a fonética portuguesa toda no sítio devido. Intriguei-me, perguntei de onde viria tal nome e ninguém me soube dizer. Nem no Museu Nacional em Bamako consegui encontrar explicação. Já “googlei” o nome e nada! Será que algum dos leitores do maschamba me consegue esclarecer?* texto postado originalmente em 9 de Novembro de 2009AL
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